A passagem para a noção de produção é feita através de uma citação de Platão em que este refere “Todo deixar-viger o que passa e procede do não-vigente para a vigência é […] produção”. (HEIDEGGER, 2002:16) Associa-se assim os 4 modos de dever e responder à produção e ao produzir, à atividade e ao acto, ao verbo.
Um aspecto importante que o autor salienta é o facto de a produção e o produzir estarem não só associados ao objecto -confeccionado pelo artesão ou criado pela arte- como também aquilo que cresce na natureza. Sendo assim algo transversal à própria oposição de Natureza/Cultura.
O deixar-viger está associado à vigência do objecto, à sua materialização e apresentação. Neste contexto o autor associa produção ao processo de revelação, ao desencobrimento, ao tornar visível algo que estava oculto. É neste processo surge a noção de “verdade” sendo aqui entendida como “… o correto de uma representação.” (HEIDEGGER, 2002:16)
Este percurso que Heidegger faz pela instrumentalidade e causalidade serve o intuito de chegar mais perto daquilo que é a técnica. Segundo o autor, é no desencobrimento, neste processo de revelação, de tornar visível, de chegar à verdade, que se funda toda a produção. “Se questionarmos, pois, passo a passo, o que é propriamente a técnica conceituada, como meio, chegaremos ao desencobrimento. Nele repousa a possibilidade de toda elaboração produtiva.” (HEIDEGGER, 2002:17)
Chega-se desta forma ao conceito de que a técnica, associada não só às habilidades e actividades do artesão, mas também às artes da mente (ao saber, ao conhecimento no sentido de saber-fazer) e às belas-artes, não é um simples meio, mas sim uma forma de tornar visível a verdade oculta, uma forma de desencobrimento.
Segundo Heidegger, esta determinação instrumental e antropológica da tecnica é válida para o pensamento grego e pode servir para a técnica artesanal. No entanto, esta não é suficiente para chegar ao que é a técnica moderna, caracterizada pela máquina e aparelhos. (HEIDEGGER, 2002:18)
Pensar o diário gráfico á luz desta determinação instrumental e antropológica da técnica pode resultar em conclusões interessantes sobre aquilo que ele é. O Diário Gráfico enquanto tecnica está sem duvida associado a um processo de desencobrimento. Não só enquanto ferramenta ao serviço de processos exploratórios (brainstorms, esbocos, entre outros), mas tambem enquanto recurso semiótico ao servico de processos expositivos onde o autor recorre aos registos para comunicar um determinado ponto de vista, para desencobrir uma verdade individual. (CRUZ, 2012)
Ao contrário da técnica tradicional, a técnica moderna não se desenvolve numa produção, mas sim numa exploração “que impõe à natureza a pretensão de fornecer energia, capaz de, como tal, ser beneficiada e armazenada.” (HEIDEGGER, 2002:19)
Associado a este “armazenamento”, Heidegger desenvolve as noções de disponibilidade e dispôr. Segundo o autor os recursos apresentam-se numa disponibilidade e o Homem dispôe destes recursos armazenando-os e tornando-os assim disponiveis para um novo dispôr, numa ciclicidade infinita.
Por exemplo, a disponibilidade da paisagem natural coloca-se disponivel ao dispôr do turista. Este por sua vez produz representações (desenhos, fotografia, imagens em movimento, áudio, entre outras) que se convertem em disponibilidade para o dispôr de um leitor. No âmbito dos Diários Gráficos e aqui mais concretamente ao uso deste recurso numa esfera pública e expositiva, pode-se avançar com a ideia de disponibilidade associada ao quotidiano, ao dia-a-dia, e com o dispôr do autor que, através do desenho de observação, dispôe desse referente criando uma representação visual daquilo que observa.
Enquanto que o desencobrimento na técnica artesanal, manual ou tradicional, está associado a um processo de produção, na técnica moderna, mecanizada, o desencobrimento está associado a um processo de exploração no sentido em que é extraída do recurso, da natureza, a energia, posteriormente transformada, armazenada e distribuida. Processos estes que funcionam assim enquanto modos de desencobrimento. (HEIDEGGER, 2002:20)
Um aspecto importante é que também o Homem está disponivel a um determinado dispôr. Também ele é um recurso com um conjunto de caracteristicas que respondem a um dispôr por parte de um outro elemento. Ele faz parte de (os seus actos são reacções a) um desencobrimento que já se deu. (HEIDEGGER, 2002:22) O desafio que põe o Homem a dispôr do real é a disponibilidade. Heidegger chama Gestell (composição) ao “… apelo de exploração que reúne o homem a dis-por do que se des-encobre como dis-ponibilidade.” (HEIDEGGER, 2002:23)
“A essência da técnica moderna se mostra no que chamamos de com-posição [Gestell].”, no modo como o real se desencobre como disponibilidade. (HEIDEGGER, 2002:26)
Tudo isto parece ter sido levado a um extremo nos dias de hoje em que dispomos da disponibilidade enquecendo-nos da essência de nós mesmos. Segundo Heidegger, “O homem está tão decididamente empenhado na busca do que a composição provoca e explora, que já não a toma, como um apelo, e nem se sente atingido pela exploração. Com isto não escuta nada que faça sua essência existir no espaço de um apelo e por isso nunca pode encontrar-se, apenas, consigo mesmo.” (2002:30)
O perigo não está na técnica, mas sim no “…destino enviado na disposição…”, no mistério da essência da técnica. (HEIDEGGER, 2002:30)
É comum encontrar-se um discurso semiótico relativamente ao desenho de observação em diário gráfico que se caracteriza pela ideia de que este tipo de registo é mais enriquecedor do que o registo fotográfico. Diz-se que o desenho leva o desenhador a ver com muito mais detalhe o que se encontra à sua frente e, nesse sentido, a expriencia vivida no processo de desenho é mais rica, mais intensa, fica mais marcada na memória e leva-nos a perceber o que se esconde por detrás da fina camada do evidente. John Ruskin, um intelectual do século XIX, ficou entusiasmadissimo com o aparecimento da fotografia. No entanto, rapidamente ficou desiludido quando percebeu que as pessoas, através da fotografia, olhavam ainda menos para as coisas.
É curioso verificar, por exemplo, que a experiência da viagem passa muitas vezes pela observação das imagens recolhidas durante essa mesma viagem. É este o perigo do mistério da essência técnica a que se refere Heidegger… a disponibilidade do real ao dispor do acto fotográfico (Dubois, 1992), a fotografia, parece trazer consigo uma promessa de um destino, de uma revelação, que, apesar de não sabermos muito bem qual é, acreditamos que o vamos encontrar numa das imagens.
CRUZ, Tiago (2012), Do registo privado à esfera pública: O Diário Gráfico enquanto meio de expressão e comunicação visual, Tese de Mestrado em Comunicação na Era Digital no Instituto Superior da Maia, Maia
DUBOIS, Philippe (1992), O Acto Fotográfico, Lisboa: Vega
HEIDEGGER, Martin (2002), Ensaios e Conferências, Brasil: Editora Vozes, pp. 11 – 38
Antigo anterior: Heidegger, a técnica e o Diário Gráfico – Parte I/II
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