O processo de mecanização dos processos, decorrente da revolução industrial, revolucionou diversos aspectos do quotidiano do Homem. Na arte, as consequência são igualmente profundas. Até aqui a obra de arte poderia ser reproduzida através de processos manuais. No entanto, a reprodução mecanizada representa algo novo. (Benjamin, 2010:13)
A reprodução mecanizada, desde a Gravura, passando pela litografia e posteriormente com a fotografia, altera os significados associados à obra de Arte. Altera o seu valor de verdade (Cruz, 2012; Leeuwen, 2005) Segundo Benjamin, à reprodução falta-lhe o “aqui e agora” da obra de arte, o seu hic et nunc. (2010:14) Este “aqui e agora” está associado à existência da obra num determinado espaço e tempo. Veja-se, por exemplo, como Mónica Cid fala no “aqui e agora” do desenho sublinhando o seu valor de verdade, autenticidade, objectividade, entre outros. Segundo a perspectiva de Benjamin, a obra reproduzida perde o seu valor de autenticidade pois ela é a sua cópia. “O hic et nunc do original forma o conteúdo da noção de autenticidade…” (2010:15)
No entanto, a reprodução mecanizada é algo mais independente do original do que a reprodução manual. Nesta última, o original conserva a sua autoridade mas, com a reprodução mecânica, esta fronteira torna-se extremamente ténue pois a cópia chega ao ponto de revelar aspectos até então inacessíveis ao olho nu. Por outro lado, o original deixa de estar preso a um determinado espaço. A cópia permite que a obra possa habitar vários espaços simultaneamente. Com isto, não só a autenticidade que é posta em causa, mas também a própria ausência da materialidade. (Benjamin, 2012:15)
Dois aspectos levam à perda da aura (fundada na autenticidade e materialidade): por um lado, as massas reivindicam que o mundo lhes seja tornado mais “acessível” e, por outro, não aceitam não ter o original e absorvem a reprodução. (Benjamin, 2012:17) Comportamento este previsível na perspectiva de Ortega y Gasset (2004) quando caracteriza as massas como mimadas, que não têm objectivos mas sim exigências, e que reivindicam espaços outrora pertencentes às minorias.
O valor de autenticidade surge associado ao valor ritual da obra de arte, à sua função mágica. Este valor está associado à sua existência e não à sua difusão. Ora, segundo Benjamin, “… a reprodução mecanizada, pela primeira vez na história universal, emancipa a obra de arte da sua existência parasitária no ritual. De modo crescente, a obra de arte reproduzida torna-se reprodução de uma obra de arte destinada à reprodutibilidade.” (2010:19)
Abala-se assim a função ritual e surge a função de exposição, que surge com os métodos de reprodução. Neste contexto é pertinente o cruzamento com as funções da imagem enunciadas por Jacques Aumont. Relativamente à função da imagem, segundo o autor, esta está associada à maneira como a relação com o seu uso é explorada e, neste sentido, enumera três formas principais dessa relação: (i) o modo simbólico em que as imagens serviram primeiramente como símbolos (religiosos ou não) que davam acesso ao sagrado; (ii) o modo epistémico em que a imagem informa sobre o mundo (informações visuais e não-visuais); (iii) e o modo estético em que a imagem destina-se a agradar ao seu espectador, a proporcionar-lhe sensações específicas. (2005:67) Assim sendo, esta função ritual de Benjamin relaciona-se com este modo simbólico, permitindo um translatio ad prototipum (Gubern, 2007). No entanto, é importante ter em atenção que esta função ritual nunca deixa de existir totalmente. A função simbólica, muito associada às sociedades religiosas, está hoje mais associada, por exemplo, ao imaginário da publicidade e da fotografia de moda. São imagens que não pretendem “… fazer-nos crer na realidade objectiva das visões que transcrevem…” (Ribeiro, 2004:41) mas que favorecem o translatio (Gubern, 2007), a passagem ou a representação de uma realidade imaginária ou conceptual. (Cruz, 2012:15)
Algo semelhante acontece com o Diário Gráfico quando este passa a fronteira privado/público e, consequentemente, a sua função exploratória/expositiva. O Diário Gráfico chega à esfera pública através de um reprodução. Um processo de digitalização permite que este objecto surja no espaço público carregado com uma série de significado provenientes da esfera privada, numa tentativa de salvar a sua “aura”.
Voltando a Benjamin, não foi por acaso que o retrato foi o “… objecto principal da primeira fotografia. O culto da recordação dos seres amados, ausentes ou defundos, oferece ao sentido ritual da obra de arte o último refúgio.” (2012:22) Uma pequena contradição parece existir no texto de Benjamin. Na fotografia (e no filme) a reprodução mecanizada faz parte do próprio processo de reprodução e, nesse sentido, este media distancia-se da pintura ou do desenho. Por um lado o autor refere que a reprodução mecanizada retira a aura à obra de arte, pois, entre outros aspectos, perde-se a sua materialidade, mas, por outro, refere que “Na expressão fugitiva de um rosto humano, nas antigas fotografias, a aura parece brilhar uma derradeira vez. […] Mas mal a figura humana tende a desaparecer da fotografia, o valor de exposição afirma-se superior ao valor ritual.” (2012:22) A aura está, na sua existência original, no referente. Neste caso, no sujeito fotografado. E não na sua representação, no seu representamen, segundo Pierce. (Joly, 2005; Chandler:2007 in Cruz, 2012:23)
Isto leva-nos a algo interessante. Benjamin sugere que a fotografia em bom estado conserva um valor de autenticidade superior à fotografia degradada. Ora, este valor de verdade, autenticidade, objectividade, entre outros, é algo transportado para o processo de leitura da imagem e não algo contido na imagem em si. Ler uma imagem como autentica associa-se a diversos factores. Se houve tempos em que a fotografia a cores era vista como menos verdadeira que a fotografia a preto e branco, entretanto o processo inverte-se. Da mesma forma, uma fotografia antiga e degradada é hoje vista, pelas massas, como mais autêntica que uma fotografia digital (imagem matricial). (Cruz, 2012)
Em conclusão, para Benjamin, o Homem moderno renuncia à aura da obra de arte. Será que andamos hoje novamente à procura da aura? Vários eventos, artefactos, serviços, entre outros, podem sugerir este sentido. Entre outros, temos o exemplo do Instagram, do festival Black & White, de um gosto generalizado pelo vintage e pelo analógico e, até mesmo, o próprio registo em Diário Gráfico. O valor de verdade associado à fotografia analógica, em grande medida devido à sua natureza indicial, é hoje posta em causa com o advento das imagens digitais. Por outro lado, o desenho perde o seu valor de verdade com o advento da fotografia, mas, por exemplo, com o uso do Diário Gráfico, estes registos ganham um valor de verdade e autenticidade acrescido.
Por um lado, o desenho feito no Diário Gráfico conserva o seu “aqui e agora” e, consequentemente, o seu valor autentico. Por outro lado, na pós-modernidade, questiona-se a verdade objectiva da fotografia (herança positivista) e aceita-se o olhar individual de um sujeito. Caminhamos hoje para a individualidade? Será que as minorias de Ortega y Gasset começam a recuperar as suas posições?
AUMONT, Jaques (2005), A Imagem, Lisboa: Texto & GrafiaBENJAMIN, Walter (2010), A Obra de Arte na Era da sua Reprodução Mecanizada, Amadora: Escola Superior de Teatro e Cinema
CID, Mónica (s.d), Mónica Cid cadernos, http://monicacidcadernos.blogspot.pt/, última consulta em 18.11.2012
CRUZ, Tiago (2012), Do registo privado à esfera pública: O Diário Gráfico enquanto meio de expressão e comunicação visual, Tese de Mestrado em Comunicação na Era Digital no Instituto Superior da Maia, Maia
GUBERN, Roman (2007), Del bisonte a la realidad virtual, Barcelona: Editorial Anagrama
JOLY, Martine (2005), A Imagem e os Signos, Lisboa: Edições 70
LEEUWEN, Theo Van (2008), Introducing Social Semiotics, New York: Routledge
ORTEGA Y GASSET, José (2004), La Rebelión de las Masas, Edição Electrónica
RIBEIRO, José (2004), Antropologia Visual: da minúcia do olhar ao olhar distanciado, Porto: Edições Afrontamento