A forma como vemos o corpo, como interagimos com ele, como o usamos, como o representamos, etc., enquanto recurso semiótico de comunicação, está ligada a todo um contexto de desenvolvimento cultural e apresenta-se associado a diferentes discursos semióticos que têm raízes nos seus usos passados que acabam por moldar o potencial semiótico presente. No seio deste desenvolvimento, em particular o desenvolvimento científico e tecnológico, surge, no início do presente século, um tipo de corpo denominado de corpo biocibernético. Um corpo “… híbrido entre o orgânico e o maquínico…” que nos leva à “… convicção de que o ser humano já está imerso em uma era pós-biológica, pós-humana.” (Santaella, 2003:182)
A imagem do corpo sofreu transformações ao longo dos séculos. Santaella refere quatro momentos importantes: (i) a era mítica; (ii) a era dos relógios, no séc. xvii e xviii; (iii) a era da máquina a vapor nos finais do séc. xviii e séc. xix; (iv) e por fim, a era da comunicação e do controlo. (2003:182) Associado a cada um destes momentos, surge um discurso semiótico particular: “… o corpo como uma figura de barro maleável e mágica; o corpo como um mecanismo de relojoaria; o corpo como um glorioso motor de aquecimento […]” e, por fim, o “… corpo como um sistema electrónico”. (ibid.)
Segundo a autora, a “… cibernética propunha que o corpo e também a mente fossem concebidos como uma rede comunicacional cujas operações bem-sucedidas se baseavam na reprodução acurada dos sinais.” (ibid.) e, neste sentido, estava estabelecido um importante paralelo entre a mecânica e o biológico. Neste contexto, “… novos termos de referência começaram a povoar o ambiente das ciências e o imaginário dos artistas: feedback, mensagem e ruído funcionavam tanto para a engenharia telefónica quanto para o sistema nervoso do corpo, ao mesmo tempo que o computador analógico e o cérebro humano convergiam para um ponto originário comum, o da teoria do controlo e da comunicação e das práticas de engenharia.” (2003:183)
Esta relação entre o biológico e o cibernético, muito presente na imagem do ciborg, foi entretanto questionada levando a uma cibernética de segunda ordem onde surge a integração da reflexividade. (ibid.) Conceito este apresentado como “o movimento através do qual aquilo que foi usado para gerar um sistema se torna, com uma mudança de perspectiva, parte do sistema que ele gerou.” (Hayles, 1999 in Santaella, 2003:183)
Este conceito surge através das discussões sobre o observador. Se numa primeira fase, na cibernética de primeira ordem, este era considerado enquanto algo fora do elemento sob observação, numa segunda fase, este poderia igualmente passar de observador a observado. (Santaella, 2003:184)
“O neologismo ciborg (cib-ernético mais org-anismo) foi inventado por Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline, em 1960, para designar os sistemas homem-máquina auto-regulativos, quando ambos aplicavam a teoria do controle cibernético aos problemas que as viagens espaciais impingem sobre a neurofisiologia do corpo humano.” (Santaella, 2003:1985) No entanto, este modelo de ciborg híbrido, dividido entre o orgânico e o maquínico, dá lugar ao ciborg como simulação digital, “… numa gradação que vai desde o simples usuário plugado no ciberespaço, tendo em vista a entrada e saída de fluxos de informação, até o limite dos avatares […], cibercorpos inteiramente digitais que emprestam suas vidas simuladas para o transporte identificatório de usuários para dentro dos mundos paralelos do ciberespaço…” (Santaella, 2003:190)
A exploração da fronteira entre a natureza e a tecnologia, muitas vezes num complexo processo onde os dois se fundem, tem sugerido (ou sublinhado) a existência pós-corporal. E é neste contexto que surge o termo pós-humano que tem ganho uma notoriedade crescente devido, segundo Santaella (2003:191), não só à literatura cyberpunk e a uma filmografia correspondente, como também às repercussões geradas no círculo académico e artístico especializado.
Assim sendo, o pós-humano diz respeito a um discurso relativo a um corpo que se situa numa fronteira entre o material e o imaterial, com componentes humanos e não-humanos. Diz respeito a uma imagem que temos do corpo e a uma fusão entre este e as tecnologias. Para Robert Pepperell (1995), as tecnologias pós-humanas passam pela realidade virtual, pela comunicação global, pela protética e nanotecnologia, pelas redes neurais, pelos algoritmos e manipulação genética, e pela vida artificial. Esta fusão entre o biológico, o tecnológico, o natural, o artificial e o humano, atinge rapidamente um ponto em que a fronteira entre natureza e tecnologia anula-se. (Santaella, 2003:192)
Santaella termina apresentando a seguinte categorização das “… novas realidades do corpo” (2003:200): (i) o corpo remodelado, associado à manipulação estética da superfície do corpo; (ii) o corpo protético, associado ao ciborb, híbrido, corrigido e expandido através de próteses, construções artificiais como substituto ou amplificação de funções orgânicas; (iii) o corpo esquadrinhado, associado ao corpo colocado sob a vigilância das máquinas para diagnóstico médico; (iv) o corpo conectado (no original, “plugado”), associado aos utilizadores que se movem no ciberespaço enquanto os seus corpos ficam conectados ao computador para a entrada e saída de fluxos de informação; (v) o corpo simulado, associado ao corpo desencarnado, criado através de algoritmos; (vi) o corpo digitalizado, associado às representações tridimensionais, completas, anatomicamente detalhadas do corpo humano; (vii) o corpo molecular, associado ao corpo que resulta das manipulações do material genético.
“A grande diferença entre as artes que utilizam o corpo do artista como suporte da arte […] e as artes do corpo biocibernético encontra-se no fato de que, por estarem lidando com o cerne das tecnologias interactivas, essas artes trazem o corpo do receptor para dentro do processo de realização da obra.” (Santaella, 2003:282)
A expressão ‘artes do corpo cibernético’ refere-se às “… artes que tomam como foco e material de criação as transformações por que o corpo e, com ele, os equipamentos sensório-perceptivos, a mente, a consciência e a sensibilidade do ser humano vêm passando como fruto de suas simbioses com as tecnologias” (Santaella, 2003:271) e, neste contexto, existem duas tendências principais: as refrações do corpo e a memória do corpo. No primeiro caso está em causa algo que vai mais além do que a mera deformação ou distorção da aparência física do corpo. Trata-se de uma transformação que acontece igualmente num plano transcendental. No segundo, está em causa o registo da fisicalidade do corpo. (2003:276)
O corpo sob interrogação, devido à sua relação dinâmica com as tecnologias, vai culminar na denominação de “Pós-Humano”, expressão utilizada para significar as mudanças físicas e psíquicas, mentais, perceptivas, cognitivas e sensoriais que estão em causa. (Santaella, 2003:273)
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Santaella, L. (2003), Culturas e Artes do Pós-Humano, Paulus: São Paulo